“Mas sou minha, só minha e não de quem quiser”
(Legião Urbana)
Essa é mais uma da série “Eu sou mulher”. Sim, sou mulher, mas Shakespeare estava enganado, já que fragilidade não é o meu nome. Sim, sei o que quero. Sim, eu nasci mulher e me tornei mulher. Sim, muitos pensam que sabem como pisar no coração de uma mulher. Não, meu barro não pode ser decantado facilmente em uma canção. Sim, há sempre algo novo a aprender sobre mim.
Mas não sou um perigo para qualquer paraíso. E, no entanto, corro perigo.
Uma quase breve história:
Estudante de 18 anos sai de sua casa na periferia de São Paulo, em direção ao cursinho, e pega um daqueles ônibus bem conhecidos aos iniciados na arte do transporte público, atolado, cheio de vidas tentando atingir seus rumos. São 6h da manhã e o dia urge, e ela fantasia de todo o coração não perder os primeiros quinze minutos de aula como de costume. Em um dos braços, carrega uma apostila e alguns livros que usará nos intervalos das aulas; no outro, uma bolsa estilo mochilinha, colocada de lado a fim de sentir-se mais segura, afinal já eram tempos violentos, mesmo há 20 anos. Nada carregava de valor na bolsa que mal aprendera a reconhecer a utilidade. Viajava com as mãos ocupadas, mas a mente etérea argumentando com todas as suas faces sobre a possibilidade do futuro mais longínquo. Até que ela sente. Bem atrás dela. Mas acredita ser um engano e busca, então, novo posicionamento o que é utópico, pois não há mísero espaço sequer para piscar. Impõe a si mesma essa autoria de que o micrômetro que se mexeu teria sido suficiente para desvencilhar-se daquele volume que se encostava em seu quadril. Mas não foi. Olha para as pessoas sentadas diante dela, as mesmas em quem, a cada freada do ônibus, seus materiais são comprimidos. Ela as incomoda e a devolutiva de olhar quer dizer mais ou menos que “pouco me importa o que você sente, sou eu que estou desacomodada com esses livros a me bater”. O que querem é chegar, não importa onde ou às custas do quê. E ela, a estudante, é só mais uma…mulher.
Tão mulher que o tipo atrás só quer se escorar cada vez mais e se friccionar. Assim, ela grita intimamente, mas o som silencia. Pois lhe é permitido ficar calada. Quando percebe, seu ponto está chegando e é hora de procurar algum espaço para chegar à porta de saída, e agarra-se a essa oportunidade. Porém sente a presença dele atrás de si, feito sombra a seguir seus passos, embora não ouse estabelecer qualquer contato visual. Não deseja conhecer o rosto daquele que lhe roubou o equilíbrio e a inocência. Tampouco quer ser vista.
Ela desce no ponto seguinte e caminha na maior velocidade que os pés podem servi-la. E ele a rastreia:
- Vai dizer que não foi gostoso?
Novamente ela grita e ali, na vida real, o som sai abafado:
- Não. Me deixe em paz!
E já se vê à porta do cursinho, entra correndo com o rosto inflamado, o coração inteiro em chamas e, sobretudo, uma raiva inanimada de si mesma.
Sim, ela sofreu assédio sexual. Mas nunca se ouviu nada de seus lábios, pois a culpa a emudeceu.
Não, não quero só diversão. Não, não mereço um tijolo na testa. E não sou Maria Ninguém.
Sou mulher sim. Mas corro perigo.
Este teu texto é um daqueles sobre o que eu até sei o que pensar, mas nunca sei o que dizer. É um daqueles textos sobre o silêncio. Um texto denso. Abraço.
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