Não sei ainda se sentia a sua falta ou se não poderia seguir adiante enquanto seus passos acompanhassem os meus, e é certo que fui perseguida todo o tempo. Chamava a você de ontem, minha forma original, meu corpo em cicatrizes, mostrando-me ao hoje que fui mais real do que supunha.
E nessa hora, no silêncio intrigante em que me encontrava, a vida atual clamava por mim, mas a vida já vivida veio fremir a minha paz com os equívocos que adormeciam em algum quarto dentro de mim: os deslizes cometidos, as palavras não ditas, as ações tolhidas pelo zelo em excesso.
O passado me implorava por reconciliação.
Foi o tempo o responsável, o grande senhor desse encontro. Não veio trazendo cura, mas me chamou de canto e fiquei ali, contra a parede, demolindo meus próprios freios, quando ele mencionou a seguinte proposta:
Que tal fazer as pazes consigo mesma?
Então, inevitavelmente, foi preciso exorcizar a ideia de não ter mais o ontem comigo, sobrepujar a noção de que não se deve nunca mais olhar para trás…
O primeiro passo para a reconciliação foi entrar no quarto escuro munida de uma lanterna, e deixar que as sombras fossem iluminadas.
Há determinadas cenas que emolduram nossa rota e tentar apagá-las é perder o rumo de hoje. Tantas desilusões, desencantos, desenganos e tantas opiniões sem fundamento, entretanto, foi esse o caminho escolhido.
O segundo passo foi despir-me. E nua, diante do meu próprio reflexo, deixei de lado os conceitos que outrora me traíram:
De que eu era uma farsa e a qualquer instante descobririam.
De que não havia nada para dizer.
De que tudo que era feito não passava de obrigação e mesmo o amor era burocrático.
E que o que escondia era tão precioso que, se soltasse de mim, importância não mais haveria.
E feridas se transformariam em pérolas, deixando de doer. E sem a dor, o que restaria?
Pois, menina de ontem, o terceiro passo foi rir de tudo isso. E ali, crua e exposta, descascada de sentenças, foi primeiro necessário chorar todas as lágrimas novas que vieram, todas as lágrimas que chegaram atrasadas e também todas aquelas que já havia chorado um dia. E rechorei.
E ficou leve, leve, leve até o espaço aumentar, até os sonhos povoarem o dia, até o ar se espalhar por todo o quarto e fazer cócegas.
Para que eu pudesse rir.
E o riso, de início adelgaçado, tornou-se vastidão, coroando toda a vizinhança que me envolvia. E não havia onde me apoiar, não havia cais, só havia eu hoje com eu ontem, velejando bem distante do porto que julgava ser seguro.
E nos encaramos. E nos discernimos já com seriedade no rosto.
Aquela de ontem esperou que eu me aproximasse e confessei, sem pudor, sem sequelas, sem saudosismo:
- Eu te admito!
Porque nada precisava ser apagado, nada precisaria ser esquecido. Nada de demérito, fatalismo ou arrependimento deveria existir.
E a garota de ontem tomou-me as mãos e disse, em total concordância:
- Eu te aprovo.
Passado e presente se despediram em silêncio, agora com suas existências mutuamente autenticadas.
E assim o ontem pôde virar poesia, deixando o hoje em esboço para tudo que nele ainda possa ser escrito.
E nele cabe o infinito.
Meu Deus Fran… que reflexão sublime!
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Muito obrigada, gentileza sua. O que posso dizer é que os pensamentos vieram de forma avassaladora.
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