“Como será amanhã?
Responda quem puder.”
A vizinha bateu ao portão, vinha com recado na ponta da língua. Aquela época não tínhamos telefone e nem por isso deixávamos de nos comunicar.
Era semana de Carnaval e tínhamos nosso ofício a desenvolver naqueles dias: as letras das canções tinham que ser aprovadas, os símbolos nas bandeiras, as cores e as fantasias (que eram de minha responsabilidade, eu que era a porta-bandeira), o trajeto e o batuque. Minto, o batuque era mais ou menos improvisado, à hora do desfile, mas as melodias eram cuidadosamente ensaiadas.
Dividíamos, inclusive, as escolas de samba por localidade e listávamos as equipes de Rio e São Paulo. Dos nomes, só me lembro de alguns: Itaquera, Estrela, Zuzu (apelido da cachorrinha que por tantos anos habitou nosso mundo), Camisa de Vênus.
Nós nos vestíamos os três e percorríamos a casa toda por alguns minutos, para cada escola, cantando e alardeando quem estivesse por perto, com a empolgação inspiradora da infância.
“Igeniô…oooo…
É a turma de lá, laiá laiááá
Igeniô…oooo…”
E a bandeira em papel sulfite de um bairro qualquer oscilava no ar:
“Venha
Vamos sambar na passarela
Eu e a linda Cinderela
Com arte e amor, com arte e amor
Ela, com seu sapatinho de Cristal
A sambar no meu Carnaval
Que bonito há de ser, que bonito há de ser!”
E, na sequência, a bandeira de uma camisa, a ser conduzida com louvor pela porta-bandeira que vos escreve, letra decorada, batuque confirmado e pura euforia de crianças com o ritmo na veia.
“Camisa de Vênus
Na passarela a passar
Com a bateria para acompanhar
E as sambistas a dançar
Camisa, mostra-se, revela
Quero ver você sambando na passarela…de Vênus”
Ignorando o significado dos termos que nós mesmos usávamos (será?), ao final das apresentações, conduzíamos a votação, da forma mais imparcial que nos coubesse, sendo que um não conseguia esconder a predileção pelas escolas do Rio e o outro defendia a vitória das escolas de São Paulo, para as quais havia criado samba-enredo e toda a harmonia. Avaliávamos assim a evolução, adereços, e o que mais estivesse em jogo, com pitadas de imaginação, já que era tudo mais ou menos igual. No fim, a escola vitoriosa tinha seu bis.
Mas naquele dia, não houve deliberação. A vizinha vinha contar. Um acidente na estrada tinha posto fim à vida de um tio querido e meu pai saía àquela hora para reconhecer o corpo no IML.
Os versos e toadas continuam gravados, embora tenha sido necessário um resgate profundo com alguma consultoria de um dos membros das escolas vitoriosas. A sensação, porém, de que o Carnaval acaba, mas ano que vem estará de volta, e uma vida que se desfaz, essa não se retoma, isso fica cravado na pele. Nessa noite, não houve apuração, não houve resultado, foi, dessa forma, coroada por irresolução. À hora de dormir, o sono não vinha. A mente tinha sido povoada, pela primeira vez, com as incertezas em relação ao futuro e daí em diante, elas nunca mais se ausentaram.
Mais uma vez, surpresa e lágrimas! Chego a pensar que Quinho morreu sentindo e vibrando com o clima de Carnaval que vocês viviam! Ele adorava Carnaval! Vocês lhe deram um presente e ele morreu feliz. Beijos
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Vida e morte em enredo, carnaval é sambar e sambar no idioma kimbundu, um dos dialetos Bantu ( significa rezar ).
É triste uma vida deixando de dividir junto, mas saiba que tem tudo a ver com carnaval. A morte antes era feita com batuques e se bebiam o morto para afastar as tristezas.😉
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